02 February 2008

A Intocável (Parte I)

Ela entrou no restaurante, à mesma hora de todos os outros dias, e dirigiu-se à mesa do costume sem sequer olhar em volta. Senta-se e abre a mala para tirar o seu pequeno acompanhante de quase todas as horas, a sua vida na palma da mão: o palm. Espera um e-mail importante que ainda não chegou, e começa a reorganizar a sua agenda quando chega a funcionária de sempre para anotar o seu pedido.
O e-mail não chega, talvez tenha que adiar aquela reunião... Levanta os olhos, pensativa, sem ver o restaurante, que começa a encher, nem a forma como o sol de inverno brilha lá fora.
Ela não vê, mas é vista.
Miguel acabou de chegar a um novo emprego, longe da cidade onde sempre viveu e ainda se admira com a alegria que encontra nesta nova terra solarenga. Gosta de observar, é o seu passatempo desde que se lembra. Observar, escutar, percepcionar... Tentar adivinhar as vidas alheias, imaginar como serão as pessoas na sua casa, na sua intimidade. Está um casal na mesa ao lado que ele observa sub-repticiamente. Ela, uma mulher bonita de vinte e muitos anos, está nervosa, ele vê pequenos tiques que acredita indicarem que ela não se sente confortável ali, ela olha muitas vezes em volta, como se tivesse receio de ser vista, sorri e conversa com o acompanhante, mas sem se entregar completamente à sua companhia. Na mão esquerda, uma aliança de ouro. Sem dúvida, aquele não deve ser o marido. Quando ele leva o copo à boca ambas as suas mãos ficam visíveis, e estão nuas de qualquer adereço. Jovem e sorridente, ele parece confiante e despreocupado.
Miguel segue observando as pessoas no restaurante até os seus olhos escuros encontrarem aquela mulher sozinha. É a única pessoa a comer sozinha, para além dele, mas não parece sequer dar-se conta do mundo que a rodeia, o que proporciona que ele a observe directa e descaradamente.
O prato de sopa à frente dela arrefece sem que ela o olhe, as suas mãos de dedos finos e delicados manejam um pequeno computador com facilidade. Ela tem o longo cabelo castanho preso, o que expõe o seu rosto à apreciação do recém-chegado. Ele descobre-lhe os traços finos mas fortes do seu rosto, que indicam uma mulher enérgica e decidida. Uma mulher confiante e independente, com um ar inteligente e... Bela.
Ela pousa o palm com um ar agastado de quem foi contrariada, e começa a comer a sopa.
Ele observa a forma como ela leva a colher aos lábios discretamente pintados. Gostava que ela sorrisse. O seu sorriso deve ser belo. A sua refeição chega e interrompe as divagações acerca da bela desconhecida. A empregada é simpática e certifica-se de que o novo cliente está satisfeito antes de partir de volta aos seus afazeres, libertando o campo de visão dele. A surpresa é que a desconhecida já não está lá e ele sente-se desiludido. Sorri, estranhando este sentimento e começa a comer, quando a vê de novo, saindo do restaurante orgulhosamente só. Várias cabeças masculinas, e até algumas femininas se viram à sua passagem.

Dois dias depois, Miguel regressa ao mesmo restaurante. Desta vez está acompanhado por colegas do escritório. O Paulo e a Joana são simpáticos e sorridentes, e vão tentando que ele se integre bem na equipa, ela contando-lhe os últimos mexericos e ele, mais formal, falando do trabalho e dos pequenos truques, como oferecer uma caixa de chocolates à rapariga das fotocópias para se ter prioridade. Ele sorri e responde, mas está meio ausente, os seus olhos varrem o restaurante à procura daquela cara, daquele corpo... Sem sucesso. Ela não está ali como da última vez. Miguel decide dedicar-se aos seus companheiros de refeição e à sua conversa animada.
Miguel ri-se, sonoramente, da piada que Paulo acabou de contar quando o riso lhe morre na garganta ao vê-la chegar. A sua forma de andar transpira sensualidade, o fato saia casaco ajusta-se na perfeição às suas formas generosas, e aquele decote... Devia ser crime. Intrigados, os colegas viram-se para ver o que prende assim a sua atenção.
- Ohoh! A Intocável... Esquece amigo, aquela só vê trabalho à frente.
- Ah, Paulo, um homem pode sonhar, não? - Responde-lhe.
Joana sorri e não comenta. As mulheres têm destas coisas, pequenos segredos, opiniões que não transmitem, silêncios carregados de significados que só elas conhecem.
Miguel observa a forma como ela cumprimenta a funcionária do restaurante e tenta adivinhar as palavras que compõe aquela pequena conversa. Como da outra vez, ela senta-se sozinha e agarra no palm, trabalhando sem cessar.
A conversa dos novos amigos perde as cores garridas que ainda há pouco tinha, e ele responde de forma distante aos comentários que eles vão fazendo.
- Paulo, acho que o nosso Miguel está longe daqui... mas não muito! - Diz Joana.
- Parece que sim - e voltando-se para Miguel pergunta-lhe - Miguel, que tal voltares para casa?
- Hã? Sim, para casa... Não! Para casa como?
- Já que não estás cá e não vais ter sorte nenhuma com a Intocável...
- Oh, não, nem pensem nisso! Só estava a observar, é uma coisa que eu faço. Gosto de observar, e quando o que se vê é tão agradável...
Eles riem-se, já viram aquele filme antes. Ela consegue sempre despertar a tenção dos recém-chegados, mas assim que algum se tenta aproximar é repudiado sem cerimónias e acaba por desistir.
A conversa decorre agradável enquanto Miguel vê a mesma cena decorrer em frente dos seus olhos escuros. Ela trabalha, pousa o palm de forma a ainda poder vê-lo e come, depois levanta-se e vai aos lavabos, paga e sai. Pouco depois saem eles, de regresso ao trabalho.

No dia seguinte, Miguel vai almoçar sozinho ao mesmo restaurante. Vai com o propósito de a ver e de fazer algo, ainda não sabe bem o quê, mas assim é que não pode continuar. O seu corpo reage quando ele rememora o sonho dessa noite, o sonho em que ela se derretia nos seus braços. Uma quimera... Ele recompõe-se à entrada dela. O mesmo ritual desenvolve-se diante de si, sem alterações, sem que ela levante os olhos, sem...
Ele chama a empregada, decidido, e quando ela se aproxima ele diz-lhe:
- Quando aquela senhora quiser pagar, diga-lhe que já está pago. Eu quero oferecer-lhe o almoço.
- Ah, peço desculpa, mas a senhora não aceita nada de ninguém. Nunca aceitou.
- Não se perde nada por tentar mais uma vez, pois não? Vá... Fazemos assim, você diz-lhe que o almoço dela já foi pago mas não lhe diz quem foi, pode ser?
Miguel usa os seus dotes de sedutor, descaradamente, e a funcionária acaba por ceder relutantemente. Quem poderia resistir àquele olhar profundo?
Quando a refeição dela acaba e ela se dirige aos lavabos, como sempre, Miguel espera ansioso pela sua reacção. Não era exactamente aquilo que ele esperava, parece que ela está zangada, furiosa mesmo! Ele observa enquanto ela gesticula e fala para a funcionária, depois a pobre coitada, muito vermelha, dirige-se à cozinha e traz com ela a segunda funcionária do restaurante. Mais algumas palavras são trocadas entre as três, a Intocável deixa uma nota em cima do balcão e sai, com o passo rápido de quem não está nada satisfeita.
Ui, parece que isto não correu nada bem, pensa ele enquanto a empregada se aproxima.
- Isto não voltará a acontecer, senhor, a Dra. Clara é uma cliente de há muito tempo e saíu daqui furiosa. Ela não aceita que ninguém pague o que ela consome e nós já devíamos saber disso. Aqui está o dinheiro que ela deixou, se quiser mesmo pagar a conta dela, pode ir devolvê-lo, mas não conte mais comigo!
Dito isto, ela pousa o dinheiro em cima da mesa e vai-se embora. Miguel decide não deixar as coisas como estão e, dirige-se ao balcão para pagar. A nota que ela deixou é guardada no bolso interior do seu casaco, mas ele deixa uma de igual valor como gorjeta para as funcionárias.

Miguel não está habituado a receber um não como resposta e tem apenas um dia para pensar no passo seguinte. E vocês, o que fariam?

14 comments:

Chapas said...

Sex......eu tenho uma paciêcia QUASE inesgotável.....já o fiz.....6 meses há espera e a trocar olhares........portanto.....

Cúmplice... said...

Muitas vezes pagar um almoço não chega...
Mas na maior parte de vezes é demais!...
Um olhar... E um sorriso não há nada que pague!...
Um Olhar e um Sorriso, pagam-se com Sorriso e com Olhar!...

Que fazer?...
Só na hora e no momento se sabe!...

Anonymous said...

que tal usar esse dinheiro e pagar um motel?:)

Shelyak said...

Pagar um almoço, assim como neste caso, parece-me um bocadito vulgar, ainda por cima com alguém que não se deixa seduzir tão facilmente...
E como para grandes males grandes remédios, acho que teria que fazer qualquer coisa que desse para rir... como passar em frente à mesa dela, olhando ocasionalmente e dar um trambolhão de forma a que ela visse que tinha sido ela a causadora.
Sei lá... algo bem disposto...ou então, seguindo o tal anúncio... segui-la na rua, e oferecer-lhe um ramo de flores, como no anúncio... e seguir depois...
:)))))

cheiodetesao said...

Eu acho que não estava para me chatear!

A pessoa mais importante do mundo, para mim, sou eu! Mai'nada!!!

Por isso, se ela não quisesse a pessoa mais importante do mundo, problema dela, ela é que ficaria a perder.

De resto, andares sensuais, olhares que tais, gestos não sei que mais, há por aí aos milhais.

:)

Olá Sexhaler.

Sexhaler said...

Chapas: Gabo-te a pachorra! Livra! ;)

a.ses.i.om: Portanto... Tudo e nada! :)

Noivo: LOL De nada te servia se não conseguisses que ela fosse contigo! :P Vá lá, faz um esforço e não ponhas a carroça à frente dos bois! ;)

Sheliak: Hmmmm... És um sedutor! ;) Gostei da tua forma de pensar.

Cheiodetesao: Ora bolas, pá! Até a pessoa mais importante do mundo precisa de companhia de vez em quando... :P


O próximo capítulo seguirá nos próximos dias.

Beijo a tod@s!

Chapas said...

...Não valeu a pena...mas tenho muita paciência......Vá!!!...(lêr como se fosse uma tia da Quinta da Marinha) tem dias.....ainda no outro dia só não dei com a guitarra nos cornos de um colega porque não a tinha lá.......bem e também não tenho mais nenhuma....:P....e gosto mesmo dela...:)

Ana said...

Eu não sei. A mulher não aceitou comida, pá.. o que se pode fazer a seguir? :p

cheiodetesao said...

E quem te disse que "a pessoa mais importante do mundo" não tem companhia??? Hã??? Ora diz lá, vá...

Ai o ca...raças!!!!

;)

Claro que tenho companhia, está aí a Afrodite que não me deixa mentir. Eu só disse que responderia na mesma moeda à gentil senhora de nariz arrebitado, essa agora!!!

:)

D. Sebastião said...

mandava-a dar banho ao cão...

beijoca, miuda!

Ana said...

Estou curiosa para ver o desenrolar desta história!
Quanto à tua questão.. Não sei bem! Iria talvez falar directamente com "ele"! Enfrentar a fera! lol

Alguém Comum said...

Nada.

Porque foi ele pagar uma refeição a alguém que ainda não conhece?

Normalmente com uma mulher que deve ser muito independente...

Grave erro e... muito pouca prática.

Seria melhor não fazer nada outra vez.
Há homens que procedem erradamente na ocasião errada e no sítio errado.

Bj

bbastos20 said...

Não sou nenhum D. Juan, nem nada que se pareça mas uma bonita rosa vermelha fica sempre bem... talvez na mesa onde sabes que se vai sentar, com um pedido de desculpas pela tentativa anterior...?

Sexhaler said...

A história vai ter continuação em breve, está feita e delineada na minha mente e só me falta passa-la para o... monitor! lol
Bbastos esteve quase lá! Ainda cheguei a pensar em algo parecido, mas... a volta a dar será outra!

Beijo a tod@s!